Crónica de Alexandre Honrado – Não se deve simplificar

Alexandre Honrado

 

Crónica de Alexandre Honrado
Não se deve simplificar

 

Aceito: nunca se deve simplificar o real, nem subordiná-lo apenas àquilo que o completa, como, por exemplo, o imaginário e o simbólico.

Aceito que o real é construído pelo formato compacto do que se faz e age e do que alguns pensam. O real é ainda e talvez essencialmente uma construção social, nem sempre o que parece é, pelo que aceito que, de modo lato e sincero todo o real é também o irreal (e a irrealidade) que o contém e que contém. É por isso que, confesso, confrange-me isto de pensar. Trai o real, pelo menos, é uma quase perfídia de nós e do que os outros imaginam que somos. Porque para mim, pensar é uma forma irredutível do sentir – e isso perturba-me, engelha-me o discernimento, confrange-me ao ponto de ficar em torno do que penso, sentindo-me até à dor ou até à incapacidade de a sentir.

Penso isto; penso na guerra; penso em mim; estou no átrio de uma clínica médica, uma decrépita e enganadora sala de espera (cada um espera coisas diferentes e uma sala não é isto, triste pátio onde esperamos). Sinto que não sou este aqui sentado, emaranhado no sentir. Não, nem sequer é real este momento. Belisco-me e não sinto nada.

Para passar o tempo leio um artigo médico: a analgesia congénita é uma doença rara que faz com que o indivíduo não sinta nenhum tipo de dor.

Creio que é esta a nova doença do século. Somos espetadores parados diante dos ecrãs, os nossos olhos saltitam de imagem para imagem, os nossos polegares perseguem a ação.

Trocámos o real pela analgesia congénita e até os beliscões das bombas, dos torpedos, das  armas de destruição massiva, dos desalojados, dos refugiados e dos mortos nos deixam indiferentes, pior ainda, indolores.

Os sentimentos humanos, aparentemente, vivem em escassos espaços emaranhados, onde um dia bate o sol e tantas vezes as intempéries assinam a destruição.

Isto sou eu a pensar. Falo por mim e pelo que observo. Sinto. Isto sou eu. Sentir?

Nada me conduz a ser juiz em causa alheia ou a produzir pensamento acertado sobre os outros, porque até sobre mim as coisas por vezes são estranhas contradições, enfim, emaranhados.

Sei que o percurso do mundo releva o que de pior há nos humanos, com isso se faz a história e se esmagam as memórias. Ninguém recorda coletivamente os melhores momentos do altruísmo, da paz e da concórdia, mas, mesmo que veladamente, há sempre quem registe e evoque os acontecimentos mais traumáticos e vergonhosos.

É nestas alturas que me fica a incomodar aquela afirmação de Bruno Latour: “jamais fomos modernos”. Sim, faltou-nos sempre muita vida para viver.

Se alguém afirmar que esta é a minha realidade, desminto-o já. Não se deve acreditar em tudo o que se lê, nem simplificar o que de si já é tão tristemente simples.

 

Alexandre Honrado


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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